Já tive a oportunidade de realçar a relevância do Vale do Loire nomeadamente quanto à sua paisagem e castelos e chegou o momento de falar um pouco de um dos mas imponentes castelos. Sendo também o maior do vale conseguiu a importante faceta de roubar por várias vezes a atenção do Rei Sol ao ainda mais pomposo Palácio de Versalhes. Falo do Castelo de Chambord e da sua zona verde envolvente.
Este castelo foi construído no local de Chambord onde já existia previamente um outro inserido numa zona florestal remota e onde o rei Francisco I gostava de caçar. Em 1518 aproveitou para arrasá-lo e em sua vez mandar construir um sumptuoso palácio. Nesta época o grande Leonardo da Vinci era hóspede do rei no Clos-Lucé (solar localizado a umas centenas de metros do castelo de Amboise e que serviu de casa a Leonardo até ao fim da sua vida) e sabe-se que desenhou o plano inicial do castelo que foi sendo alterado e engrandecido ao longo das várias fases da sua construção. No entanto, a mania da grandeza atacou de tal modo que o rei chegou mesmo a querer mudar o curso do Loire para fazê-lo passar junto ao castelo, acabando o entanto por ser o rio Cosson a ser desviado para alimentar o fosso.
Remodelações e alterações ao castelo propriamente dito ocorreram ainda no século passado e nas zonas circundantes. Ainda há muito pouco tempo foi decidido construir um jardim à francesa ao seu redor, onde apenas existe relva. Este castelo encontra-se inserido numa vasta zona verde protegida denominado Domaine National de Chambord sendo desde 1981 património mundial da Unesco. Francisco I que chegou a viver no castelo não chegou a vê-lo acabado. O seu filho, Henrique II, continuou com as obras mas também em 1559, à data da sua morte, não estava ainda acabado.
Entre os sucessivos reis houve de tudo, dos que mal estiveram em Chambord, aos que continuaram a apreciar as caçadas nos terrenos e os que acabaram por levar a corte e passar lá umas boas temporadas. Molière escreveu Monsieur de Pourceaugnac em Chambord tendo também aí ocorrido a primeira récita desta comédie-ballet a 6 de Outubro de 1669 diante da corte do rei Sol, Luís XIV, e com música do grande Jean-Baptiste Lully. A 14 desse mesmo mês mas do ano seguinte seria também estreado no castelo de Chambord outra comédie-ballet, o Le Bourgeois Gentilhomme também pela companhia de Moliére e música de Lully.
“Est-ce que les gens de qualité apprennent aussi la musique?”
Faite à Chambord, pour le divertissement du Roy i.e. feito em Chambord para o divertimento do Rei é o que se pode ler na página de título destas duas obras. No entanto parece que na primeira representação do Le Bourgeois Gentilhomme, a comédia-ballet em que um tal Sr. Jourdain, burguês mas com pretensões a fidalgo, o Rei congelou e consigo toda a sala. Era suposto ser uma comédia. O Rei obviamente não gostou nada da ideia subversiva e a cambada de bajuladores que são afinal todas as cortes, também não. Parece que só à segunda é que se achou que de facto, um burguês, pobre coitado, por mais que tentasse e fosse ensinado nunca conseguiria chegar ao gosto e comportamento refinados próprios de alguém que o ganhou simplesmente pelo nobre berço. Claro está que se o Rei aprovou a corte ainda mais adorou, comprovando-se assim que a linhagem do lambe-botismo profissional vem de longe….
Interessante notar que a obra não se chama por exemplo Le Paysan Gentilhomme (O camponês fidalgo). Ainda mais ridículo para a época pois que pelo menos o original responde claramente à inexorável ascensão da classe que viria a governar anos mais tarde e até aos dias de hoje a sociedade, destronando assim a nobreza. As razões de berço mantêm-se, tendo-se refinado noutros processos mais subtis mas igualmente eficazes. No entanto, a actualidade da obra está nomeadamente nos detalhes da personagem do burguês e da sua entourage nomeadamente nos costureiros yes-men/women. Pelas mesmas ou razões similares, quantos personagens colocados nos diversos quadrados do tabuleiro de xadrez da sociedade actual e desgraçadamente, da futura, não são cópia ainda mais tosca deste seu antepassado? Mas a grandeza da obra é que ela bebe da genuína vontade de cada Homem em querer aprender, conhecer, ser afinal e simplesmente melhor,… especialmente quando não se é um tonto como Jourdain. Palavras sábias trocadas entre o Sr. Jourdain e o Mestre de Filosofia:
— Que voulez-vous apprendre? / Que deseja aprender?
— Tout ce que je pourrai, car j’ai toutes les envies du monde d’ être savant […] / Tudo o que puder, pois tenho toda a vontade do mundo em ser sábio […]
— Nam sine doctrina vita est quasi mortis imago. / Sem aprendizagem/ciência, a vida é quase a imagem da morte.
Os Turcos e seus ensinamentos
A Marche pour la cérémonie des Turcs que imediatamente precede o Ballet das Nações (a 4ª entrada é imperdível), é uma das mais famosas músicas de Lully. Ao dirigir a orquestra de câmara do Rei e para marcar o andamento/tempo da música, Lully costumava utilizar um pesado bastão. Ora, calhou que um dia ao ensaiar precisamente esta música deu uma bastonada no pé. Foi de tal modo que veio infelizmente a morrer devido à infecção assim criada.
A julgar pelos comentários aos artigos publicados nos mass-media da actualidade, esta cerimónia começa com um ensinamento muito útil, muito actual e que diz em língua Franca:
Se ti sabir, /Se souberes
Ti respondir; / Responde
Se non sabir,/ Se não souberes
Tazir, tazir. / Cala-te, cala-te.
O castelo de Chambord, é sem sombra para qualquer dúvida um do mais imponentes castelos do vale do Loire contando 440 salas, 83 escadarias (13 principais) e 365 lareiras que acabam naquela magnífica floresta de chaminés que se vê sobre o telhado. A escadaria central, muito provavelmente desenhada por Leonardo da Vinci é uma escadaria que se assemelha à dupla hélice do DNA. É uma escadaria a dupla revolução em que as pessoas que sobem por uma das hélices não se cruzam com as que descem pela outra hélice. Brilhante!
E tudo isto fez-me lembrar do demasiado tempo que já não ouço o meu magnífico CD contendo Le Bourgeois Gentilhomme e L’Europe Galante de André Campra, tudo pela La Petite Bande dirigida pelo saudoso Gustav Leonhardt e editado pela Harmonia Mundi em 1988.
A foto foi tirada nas traseiras do castelo, junto ao fosso.